A Florianópolis de José Arthur Boiteux

José Arthur Boiteux

Ao caminhar solitariamente por sua cidade, Florianópolis, nas três primeiras décadas do século XX, o intelectual catarinense José Arthur Boiteux (1865-1934) captou, através da lente de sua câmera fotográfica, cenas de ruas, casarios, praças, monumentos da sua cidade e de seus arredores, preocupado em registrar tanto a vida comum e ordinária quanto marcas arquitetônicas de seu tempo.

 

José Arthur Boiteux José Arthur Boiteux: Irmão de Henrique (18631947) e Lucas Alexandre Boiteux (1880-1966). Formado em Direito, destacou-se como militante republicanista, vindo por esta via iniciar sua vida política como oficial de gabinete de Lauro Müller, prosseguindo na carreira política e ocupando cargos administrativos. Intelectual de projeção, foi fundador de instituições que marcaram as primeiras décadas do século XX, como a Faculdade de Direito e a Academia Catarinense de Letras, além do próprio Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina.

 

O acervo fotográfico particular deste caminhante solitário constitui-se num banco de dados sobre a cidade em que ele viveu e que se mostra, agora, eternizada nos inúmeros registros que ele nos legou. Tais imagens, aparentemente mudas, ganham voz através da análise feita pelo olhar do historiador que as transforma em evidências históricas e, tais quais os textos literários ou testemunhos orais, têm incontestável valor pela possibilidade de contato com uma sensibilidade coletiva de um tempo já passado. Com vistas à divulgação e análise do seu acervo fotográfico, elaborou-se o Projeto de Pesquisa “Imagens de um Presente” que teve como um dos objetivos divulgar o conjunto iconográfico do acervo – um verdadeiro manancial de fontes sobre a memória urbana e biográfica daqueles que vivem na cidade de Desterro/Florianópolis – doado, em 1989, pela família Boiteux ao Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina. Deste acervo, composto de aproximadamente quinze mil fotografias foram disponibilizadas um pouco mais de duas mil imagens – incluindo cerca de duzentos cartões-postais recebidos e colecionados por Boiteux – datadas entre as décadas de 1890 e 1930. 

Testemunha privilegiada de acontecimentos validados e consubstanciados pela construção de um acervo privado, José Arthur Boiteux foi um intelectual de projeção e fundador de instituições que marcaram as primeiras décadas do século XX em Florianópolis, como a Faculdade de Direito, a Academia Catarinense de Letras, a Pinacoteca do Estado de Santa Catarina, o Instituto Politécnico e o próprio Instituto Histórico e Geográfico que hoje detém a salvaguarda de seu acervo. Descendente de franco-suíços e filho de comerciante, Boiteux destacou-se como militante republicanista após ter abandonado uma carreira no Exército e o curso de Medicina no Rio de Janeiro, onde se formou em Direito, mais tarde. Por esta via política, tornou-se oficial de gabinete de Lauro Müller e ocupou diversos cargos administrativos. Nesse período, mesmo como homem público que era, dedicou-se a coletar, selecionar e guardar os registros de um tempo. O ineditismo de seu acervo iconográfico particular justifica a pertinência deste Projeto de Pesquisa que reuniu historiadores, bibliotecárias e um fotógrafo e que através da análise/interpretação histórica dos registros visuais, bem como da utilização de técnicas de preservação e salvaguarda do material, fez leituras de uma memória – que se constituiu e sobreviveu – acerca dos diversos espaços de Florianópolis, entre o final do século XIX e primeiras décadas do século XX.

A partir deste acervo busca-se problematizar a própria constituição do cenário de modernidade, no sentido em que foi sendo concebida e vivida a utilização do espaço urbano em um período em que verbos como espacializar, modernizar, prosperar, higienizar e reformar impulsionaram a administração pública republicana, sustentada sob diversos interesses, anseios e expectativas. A cidade se transforma em um universo de possibilidades através do qual se pode pensar sobre as sensibilidades e as lides cotidianas e ordinárias; os empreendimentos, a violência, os descontroles e mobilizações; as diferentes formas de trabalho, crenças e festas inscritas numa variedade de representações de uma realidade e registradas pela lente de um suporte de memória: a imagem fotográfica. Ao lado das fotografias de familiares são encontradas imagens ícones da modernidade de Florianópolis. O Boiteux-fotógrafo parecia sentir-se tão cativado pelos cartões-postais e panoramas quanto pelas imagens banais de transeuntes, tais como as do vendedor de leite, da movimentação do cais, da rotina do mercado e das praças, da mulher à janela e das crianças brincando nas ruas. Ao lado do registro de grandes obras como a construção da ponte Hercílio Luz e a canalização do rio das Bulhas, o trabalho das lavadeiras à beira da Lagoa do Peri. Suas imagens são testemunhas mudas de uma Florianópolis que não mais existe que foi e continua sendo transformada pela ação do tempo e dos homens. São registros de alguém aparentemente ciente de que a cidade em que costumava caminhar estava se modificando, soterrada pelas aspirações de uma sociedade – à qual ele pertencia – que ansiava pela modernidade. Mudanças estas que aconteciam a olhos vistos em frente à câmera de Boiteux. Uma cidade que parecia só existir na idealização afetiva do caminhante solitário que, com suas lentes tentou – exercício obstinado de uma paixão descomunal por esta multiplicidade complexa que se chama ‘uma cidade’ – dar vida ao que escolhia para fotografar.

Os moradores aparecem como espectros de luz, borrões em preto e branco que escorrem, como figurantes, através de ruas e praças. O espaço urbano a eles pertencia e o fotógrafo Boiteux capta detalhes como os gestos perdidos de personagens ‘ordinários’ expressos na languidez do caminhante solitário, na pressa da lavadeira com sua trouxa de roupa, na criança que brinca na soleira da porta da casa. Há fotografias de praticamente cada etapa da construção da Avenida do Saneamento, posteriormente chamada de Avenida Hercílio Luz, desde as casas simples em condições insalubres até o trabalho dos operários, a inauguração da Ponte do Vinagre e a posterior arborização da avenida. O acervo de Boiteux é uma importante fonte para a história da cultura visual da cidade. Esta visualidade urbana traz consigo elementos icônicos clássicos de uma sociedade que se pretende moderna. É o caso das novas sociabilidades vivenciadas no cotidiano de pessoas comuns nas mesas dos cafés, nos bancos das praças, nos balcões dos estabelecimentos comerciais, nos salões dos clubes, todos redutos registrados pela câmera de Boiteux. Se modernidade é um conceito em eterna construção, e já que um dos elementos definidores da modernidade é, exatamente, a mudança nas relações com o espaço, o dinamismo de uma cidade que se pretende moderna pode ser representado através do grande número de obras públicas registradas por fotografias que hoje se constituem em materiais importantes para os pesquisadores da paisagem urbana da cidade de Florianópolis. O projeto Imagens de um Presente, ao contribuir para a catalogação, mapeamento e salvaguarda do acervo iconográfico de José Arthur Boiteux, buscou iniciativas para a divulgação deste acervo, como a elaboração de um CD-Rom, com uma seleção de fotografias e cartões-postais trabalhados no projeto, e a organização e elaboração de um WebSite oficial, www.imagensdeumpresente.udesc.br, importantes ferramentas para o estímulo aos demais pesquisadores e interessados em trabalhar e discutir o acervo de um homem que, ao fotografar a cidade em que viveu, num impulso de documentar sua arquitetura e seu dia-a-dia, deixou como legado aos historiadores um inventário da memória urbana de Florianópolis, uma passagem que permite, ainda hoje, tantas viagens. HC

Dra. Maria Teresa Santos Cunha – Departamento de História – UDESC. Felipe Matos é Mestrando em História pela – UFSC.

Artigo publicado na edição número 03. Para comprar clique na imagem!3


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